domingo, 11 de dezembro de 2011

Viajar Para Dentro

A tarde revela-se chuvosa e fria, mas a conversa sobre viagens e errâncias é suficiente para aquecer as almas e para instigar o corpo a iniciar mais uma viagem. A viagem hoje vai ser diferente. Vai ser uma viagem por dentro, por dentro de nós e por dentro da minha cidade. E se uma grande viagem como as que ocupam permanentemente o meu imaginário se divide em etapas, a minha viagem de hoje divide-se em tempos. Hoje vou viver a cidade com tempo.

Primeiro tempo. O imponente edifício da Cadeia da Relação do Porto, onde actualmente funciona o Centro Português de Fotografia, é o início deste meu percurso. Enquanto espreito a exposição patente nas antigas celas colectivas do piso térreo, reparo no segurança que fala com um pequeno grupo de pessoas no pátio da prisão, explicando que era o único ponto onde se apanhava ar puro. Aproximo-me, e fico colada à visita efusiva e apaixonada que o Sr. Paulo Ferreira de olhos claros e brilhantes de entusiasmo, lidera por puro prazer. Demonstra um conhecimento incrível sobre a história da cadeia, revelando histórias fascinantes perante uma plateia atenta e entusiasmada.
Subindo para o segundo piso mostra-nos um máquina fotográfica antiga que era utilizada para tirar fotos aos presos. Fala-nos da Sala das Mulheres, uma sala com paredes de estuque e de tons amarelados e esverdeados, um luxo para uma prisão, justificado por ser esta uma das únicas que prendia mulheres na altura. Dentro desta sala e perante uma plateia crescente, explica porque é que o edifício esteve a cair quando lhe retiraram o muro que fazia o suporte estrutural. Regressa temporariamente ao papel de segurança e diz “Sim Pedro à escuta”, enquanto nos dirige para junto da saída da sala mostrando-nos as janelas interiores com gradeamento em ferro onde os cabos estão torcidos.
Passamos ao 3.º piso, subindo umas escadas escuras de degraus altos por onde corre uma aragem fria. Dirigimo-nos à cela de Camilo Castelo Branco, onde segundo o Sr. Paulo, Camilo terá escrito o Amor de Perdição e depois a Queda de um Anjo. Foi aqui, nesta cela dos Quartos de Malta, reservados para presos com privilégios, com fantástica vista para a Sé e para o Mosteiro da Serra do Pilar, que esteve um ano e 15 dias à espera de julgamento. Camilo tinha tantos privilégios na prisão, que lhe era autorizada uma visita curiosa, a Minerva, sua cadela. Minerva ficava junto a ele na cela, e esteve ao lado de Camilo numa cadeira perto da sua cama durante o período em que permaneceu na enfermaria. Quando o escritor morreu, a cadela morreu pouco tempo depois porque só aceitava comida da mão do dono. Termina assim a visita inesperada à Cadeia da Relação do Porto.
Segundo Tempo. Saio do edifício da Cadeia da Relação e caminho pela rua de São Bento da Vitória, uma rua granítica que termina num muro de pedra com um velho portão de ferro. A curiosidade para ver as vistas é o mote perfeito para a infracção. Afinal, o portão nem sequer está fechado. Transposta a barreira acerco-me do miradouro. A vista sobre o Porto é diferente do habitual. Avisto a Sé, o Convento do Pilar do lado de lá da ponte D. Luís, o telhado do renovado Mercado Ferreira Borges, e o topo do nobre Palácio da Bolsa. De volta, paro à porta de um tasco para falar com o Sr. Joaquim, portuense que nunca subiu à Torre dos Clérigos, que fuma o seu cigarro, meio apagado pela chuva que entretanto começou a cair. Prossigo o caminho com a promessa de, da próxima, provar um copo de vinho da casa.
Terceiro Tempo. Chego ao cimo da Rua de São Bento da Vitória e viro para a Rua dos Caldeireiros. Desço observando as casas velhas, as pessoas à janela, a roupa nos estendais. Paro junto à Capela de Nossa Senhora da Silva. Um senhor à janela de uma casa vizinha informa que, visitas, só ao sábado e que ainda vive lá gente. A paragem revela ao lado da Capela umas janelas em vidro com uma luz quente por trás que aguça a curiosidade. Atrevidamente bato à porta que se encontra fechada. Convite para entrar na Guest House Miss´OPO, onde a fotógrafa Ana Luandina, de Luanda, que sonhava ter uma livraria, me recebe e me deixa explorar o espaço ainda por abrir, enquanto explica como a Guest House – um projecto de duas amigas, vai funcionar. Neste local espera desenvolver trabalhos de retratos com os hóspedes que por aqui passarem, e vai criar uma pequena livraria.
Quarto tempo. Saio e continuo a descer em direcção à Ribeira. O caminho é um caminho novo nunca antes caminhado! Incrível como se podem sempre descobrir novos recantos na nossa própria cidade! Máquinas de costura antigas e ferros em cima do muro, com a ponte D. Luís como pano de fundo e reflectida no Rio.
Sob o olhar amistoso do cachalote no Peter Café Sport, saboreando um gin do mar, ao pé do Rio, na companhia da Ponte D. Luís, envolvida numa boa conversa, termina assim esta viagem dentro da minha cidade. Fica a vontade de regressar, de fazer mais vezes, esta viagem aqui dentro, com o olhar atento, descortinando o que aqui está, que sempre esteve e que ainda não tinha visto, como vi hoje.