A viagem começa quando? Quando fisicamente saímos de casa, de
mochila às costas ou quando iniciamos a viagem cerebral? Quando a viagem
se instala na nossa mente e não conseguimos deixar de pensar nela? E
como é que isso acontece? Com uma conversa, com um livro, com um filme
ou com uma fotografia...
A minha viagem ao Irão começou
numa solarenga tarde de Novembro, sentada numa fantástica sala da casa
de Serralves, a ouvir as histórias de viagem do Filipe Morato Gomes. A
forma como o Filipe fala do Irão é vírica. E eu, não imune aos vírus das
viagens em geral, fiquei particularmente infectada por esta estirpe
Iraniana. Deste dia ao dia da partida as conversas e as leituras sobre o
Irão foram muitas. Ouvi falar da arquitectura, dos bazares, das cidades
e depois sempre as pessoas, as pessoas e as pessoas... Ouvi que ir ao
Irão era quebrar preconceitos, a maior parte veiculados pelos média e
dos quais os Iranianos têm perfeita consciência fazendo tudo para
demonstrar o quanto são injustos. Foi assim que começou a minha viagem
ao Irão. Como em qualquer outra viagem, li tudo o que encontrei sobre o
assunto... Uma coisa que não consigo deixar de fazer.
As histórias
do Filipe que são contagiantes e na grande maioria positivas... no meio
de uma mão cheia de outras não tão felizes, que se prendem
essencialmente com o contexto politico do Irão e as suas consequências
na vida do Iranianos, são a primeira fonte de informação. Mas o que li,
de Persépolis de Marjane Satrapi, passando pela Lua de Mel em Teerão de Azadeh Moaveni, à Gaiola de Ouro e O Despertar do Irão
de Shirin Ebadi, autora premiada com o Nobel da Paz em 2003, revelaram
facetas do Irão que são difíceis de aceitar. Partir sempre de mente
aberta, sem preconceitos e sem medos... O que pode ser uma tarefa
difícil! Tendo em conta o que li e o que ouvi nos meses antes da
partida. "Mas o que é que te deu? “Tens a certeza que é seguro?”. Frases
que apareciam sempre que falava na minha futura viagem ao Irão. Tudo o
que se diz sobre o Irão é negativo, criou-se uma imagem de terror e
medo. Sim há coisas más no Irão. Mas gosto de acreditar que os países
são as pessoas e não quem as governa, afinal quantos governos “maus”
existem no mundo ocidental dito civilizado? Parti de mente aberta e
cheia de curiosidade!
O Irão surpreendeu. A cada dia.
Todos os dias. Foram 16 dias de constante superação de expectativas.
Pelo primeiro impacto, uma Teerão calma com parques cheios de gente.
Pela modernidade e ambiente vibrante da casa dos artistas em Teerão.
Pela banda sonora de um simpático café... fado. Pela grandiosidade e
ostentação do palácio Golestan e do museu das joias. Por uma Kashan cor
de terra com rasgos de riqueza. Pela beringela… divinal, pelo iogurte,
pelos sumos de meloa, pelos kebabs e pelo arroz solto e aromático,
branco e amarelo, polvilhado de bagas vermelhas. Pelo colorido e pelos
sorrisos de Abyaneh. Pelo pequeno restaurante do bazar de Kashan onde os
homens bebiam chá demoradamente e pela sua cúpula extraordinária. Pela
arquitectura grandiosa mas ao mesmo tempo minuciosa de Esfahan. Pelo
burburinho colorido do bazar de Esfahan durante o dia e pelo filtro
cinematográfico e a calma assustadora que se instalava à noite. Pela
Azadegan Teahouse, a “casa de chá” e pelo Qalyan. Pelos passeios junto
ao rio e pelas famílias que nos convidaram a tomar chá. Pelas conversas.
Pelo fim de tarde na ponte Si o Seh Pol. Pelo pão quente oferecido por
uma Iraniana à saída de uma padaria no bairro Arménio. Pelas viagens de
autocarro que revelaram a paisagem Iraniana e pelas rectas até ao
horizonte. Pela surpresa que foi o deserto, com direito a passeio
emocionante nas dunas, a pôr-do-sol, a nascer da lua, a fogueira, chá e
música sob um céu maravilhosamente estrelado. Pelo privilégio de ouvir o
Mazyiar, o homem de mãos grandes, de longas barbas e cabelos
meticulosamente alinhados, que transforma lindos potes de barro azul em
instrumentos musicais dos deuses. Pelo skyline de Yazd com os seus
badgirs que ao pôr-do-sol ganham uma cor de fogo. Pelas ruas estreitas
com paredes quentes e sombras curiosas. Pelo sorriso maroto das
crianças. Pelos tipícos Caravancerais. Pelo azul em todas as suas
cambiantes nas mesquitas. Pelos encontros e pelas conversas, algumas em
Inglês-Inglês… muitas em Inglês-Farsi. Pela devoção comovente no túmulo
de Hafiz em Shiraz. Pelo cheiro intenso e inebriante dos jardins Persas.
Pela feira de sexta-feira em Teerão. Pelas pessoas. E aqui vou ficar
repetitiva. As pessoas são sem qualquer dúvida a verdadeira riqueza do
Irão. Generosas, hospitaleiras, simpáticas, sorridentes, alegres,
acolhedoras... conscientes da imagem que o país tem no ocidente,
preocupadas em demonstrar que não é real. Pessoas que nos fazem sentir
bem. Pessoas que nos acolhem calorosamente. Pessoas que ficam
genuinamente felizes quando dizemos que estamos a gostar do Irão, que o
país é fantástico, que as pessoas são muito boas e que voltaremos
certamente!
Venho
do Irão de alma cheia. O melhor do Irão? As pessoas, as pessoas, as
pessoas... Não é cliché. A arquitectura é absolutamente fabulosa, a
história riquíssima e milenar, a paisagem variada e cativante, mas é a
paisagem humana a que mais retenho e a que mais marcas deixa no meu
tapete de memórias persas!
É verdade que estamos a falar da
Republica Islâmica do Irão, um regime fundamentalista, que reprime
hipocritamente o seu povo. Um país em que um gesto simples como o de dar
a mão entre um homem e uma mulher é proibido, e por isso vê-lo é uma
lufada de esperança. Um país que perde os seus jovens, que desiludidos
com a repressão imposta e com a passividade dos que a aceitam, decidem
sair em busca de uma vida mais livre. Os Iranianos querem mudar, mas a
sua natureza pacífica impede-os de agir, acham que o tempo se vai
encarregar dessa mudança. Mas também um país com laivos de esperança nos
casais que namoram nas margens do rio em Esfahan ou que passeiam de mão
dada em Shiraz, com os cabelos cada vez mais à vista apesar do lenço,
com roupas cada vez mais atrevidas, no bairro Arménio ou na zona norte
de Teerão.
Mas também é verdade que enquanto lá estive não pensei
muito nestas coisas más. Os Iranianos não me deram tempo para deixar de
me fascinar com a sua natureza doce, simpática, curiosa e hospitaleira.
Fui tão bem acolhida e foi com tanto orgulho que disseram vezes sem
conta "Welcome to Iran" que o tapete persa em construção na minha cabeça
não apresenta falhas na geometria do desenho!

Quando
é que a viagem acaba? Muito depois de terminar fisicamente? Enquanto a
viagem cerebral se mantêm? Enquanto acomodo as imagens, os cheiros, os
sons na tela que levo na partida. Enquanto se tece o tapete das
memórias. Enquanto fios de diferentes cores, cheiros e texturas se
organizam até que o tapete persa se complete.
O meu desejo? Que a
boa gente do Irão encontre forma de viver o magnifico Irão de forma
plena e livre. Que a luz do sol de fim de tarde que ilumina a ponte Si o
Seh Pol seja guia para o caminho. E vou certamente voltar um dia para
acrescentar pontos ao meu tapete persa!